O discurso político em Portugal está a funcionar em círculo fechado: a alternância no poder, ou a mudança na cor do principal partido da oposição, não significam forçosamente a existência de novidades quando de trata de mobilizar os cidadãos e apelar ao voto. A realidade pode ser comprovada pela análise ao discurso que PS e PSD têm usado nas últimas campanhas para eleições legislativas.
Tendo por referência o período pré-eleitoral que o país vive, o i decidiu recordar também o conteúdo dos debates, discursos e entrevistas que preencheram as campanhas para as legislativas de 2002 e 2005. E encontrou semelhanças. Muitas. A começar pelo discurso da "verdade", que já serviu de guião no caminho de Durão Barroso e de José Sócrates até à liderança do governo. O mesmo guião que agora Manuela Ferreira Leite ensaia. E que tem por contraponto o discurso do PS sobre a inexistência de alternativa à direita. O mesmo discurso que o PSD usou em 2005 para combater a esquerda.
Este artigo é sobre a política, mas não obrigatoriamente recheado de ideologia. Antes pelo contrário. Governo e oposição, sim. Esquerda e direita, talvez. Mas do que aqui se fala é sobretudo da identificação de um manual de instruções com técnicas de ataque e defesa. A arte da guerra. Uma espécie de mapa para São Bento, sem cor partidária. Com seis lições.
LIÇÃO 1
Vamos falar verdade. Apenas a verdade
Não há campanha sem “falar verdade aos portugueses”. Sobretudo para quem está na oposição. O princípio é claro: o governo mente e a oposição mostra a verdadeira realidade. A situação é evidente no actual lema de campanha do PSD e nas intervenções da sua presidente. “A propaganda e a demagogia são as últimas coisas de que o país precisa neste momento. Do que o país precisa é que lhe falem verdade.” Talvez seja melhor reler a citação anterior. Já releu? Estas palavras não são de Manuela Ferreira Leite. São de José Sócrates, que as disse em Novembro de 2004. O então secretário-geral do PS acusava Santana Lopes de ter “uma governação apenas preocupada com a imagem, a propaganda e as aparências ”. A fórmula não é nova. Na campanha para a sucessão de António Guterres, Durão Barroso aplica o mesmo lema: “Os cidadãos sabem que o essencial é falar verdade”, dizia em 2002. Sabiam?
LIÇÃO 2
Promessas? Só as que são para cumprir
Como “falar verdade” é a base de qualquer campanha, o período eleitoral exige afastar promessas vãs. “Não prometo nada que não tencione fazer e digo apenas aquilo que considero possível fazer”, afirmou Ferreira Leite a semana passada. A garantia não tem cor política. “Não vendemos ilusões nem prometemos impossíveis”, disse Sócrates em 2004. Eles prometem. Falemos de impostos. “Para garantir a competitividade quero deixar claro que vamos, com certeza, reduzir impostos”, garantiu Barroso na campanha de 2002. “Tenho uma boa notícia para vos dar. Não vou aumentar os impostos mas também não os vou baixar”, assegurou Sócrates em 2005. Foi mais longe: “O país não ganha nada com quem promete bacalhau a pataco, mas sim com quem honra promessas.” Mas os impostos aumentaram. “Não aumentarei com certeza os impostos”, diz agora Ferreira Leite. Verdade?
LIÇÃO 3
A alternativa somos nós, claro. Ou não
Dezembro de 2001: “O país sabe hoje que existe uma alternativa com o PSD”, dizia Barroso. Janeiro de 2005: “Quero convocar os portugueses para ajudar o PS a apresentar uma alternativa e a promover uma viragem política no país”, pedia Sócrates. Junho de 2009: “Somos obviamente a esperança de alternativa a este governo”, diz Ferreira Leite. Argumentos que, claro, dependem sempre do ponto de vista. Para quem governa, em vésperas de eleições a alternativa nunca existe. “A direita não tem propostas, programa, liderança, não tem alternativa”, defendeu Sócrates há um mês. Aliás, para quem está no poder, não pode haver outro discurso: a alternativa é sempre vazia. “Os assessores e António Vitorino deram-lhe umas fichas com tópicos, mas Sócrates não consegue desenvolver uma ideia”, dizia também Santana Lopes na campanha de 2005. A alternativa ainda existe?
LIÇÃO 4
A política no mundo da fantasia
O debate político não é um conto de fadas. Mas é pródigo em referências fantasiosas. “Há alturas em que é muito difícil ir contra um poder que só vende facilidades e ilusões”, dizia Barroso em 2002. Dois anos depois, a queixa é outra. “Existe na actuação do actual executivo uma lógica de ilusão que é sobretudo uma auto-ilusão”, dizia Jaime Gama em 2004, sobre o governo PSD/CDS liderado por Santana Lopes. No último debate do Estado da Nação, Paulo Rangel acusou Sócrates de estar alheado da realidade. “Vive no país das maravilhas”, disse. Sócrates e Ferreira Leite são mais dados a referências mágicas. “Este Orçamento de Estado não é transparente e tem tiques de ilusionismo”, disse a líder do PSD no final de 2008. E como foi em 2004? “Este Orçamento de Estado está cheio de habilidades e truques”, acusava então o líder socialista da oposição.
Quem acredita em fadas?
LIÇÃO 5
O futuro é risonho... se votar em nós
Em época de eleições, os partidos esforçam-se por transmitir mensagens de “esperança” e “optimismo” aos cidadãos. Mas deixam claro que não há almoços grátis: a esperança só existe com o voto certo. “Queremos um país mais rico, uma sociedade mais justa e portugueses mais cultos”, sugeria Barroso em 2002.
“O país não está condenado à recessão e ao subdesenvolvimento”, dizia Santos Silva na campanha de 2005. “Há muitos portugueses que ainda não desistiram de acreditar que é possível ter um futuro melhor”, defendeu Ferreira Leite em Junho. Mas na óptica dos governos o optimismo só existe se tudo continuar como está. Por isso, invocam-se fantasmas. “Governar à PS é gastar hoje para outros pagarem mais tarde”, dizia Santana Lopes em 2005. “O PSD não está à altura dos tempos difíceis por que passamos”, diz agora Sócrates. Há futuro?
LIÇÃO 6
Não somos revolucionários
O verbo “rasgar” entrou no léxico político a propósito de uma declaração de Manuela Ferreira Leite sobre a ruptura que o PSD pretende fazer com as políticas do PS, caso chegue ao governo. A explicação surgiu dias depois: “Não há nenhuma medida social anunciada por este governo da qual eu discorde. Eu nunca disse que rasgaria políticas sociais”, assegurou. Em Maio, a líder social-democrata deixara outra garantia para futuras políticas de um executivo PSD. “Não digo que não só porque vem do governo.” Em Dezembro de 2004, Sócrates tinha um discurso idêntico: “Um governo do PS não deitará fora tudo o que existe só porque foi feito pelos outros, nem ficará entretido a dizer mal do governo anterior.” Mas o estado das contas públicas em 2005, após a governação PSD/CDS, tem sido um manancial de argumentos para os debates de hoje. Acredita em revoluções?
Artigo no Jornal i de ontem