Ao ver a transmissão em directo da chegada de Ronaldo ao estádio do Real Madrid pudemos aprofundar o receio de que as sociedades avançadas estão empenhadamente a caminho da imbecilização. A veneração dos ídolos criada pelo marketing e pela devoção futebolística justifica tudo, até honras de directos que os revelam à saída do hotel, os mostram na simples qualidade de passageiros de um automóvel descapotável, os transformam em Deuses do novo Olimpo dos tempos modernos que são os estádios de futebol.A propósito desta crónica do jornal Público:
O dia de hoje é um manifesto da capacidade do Real Madrid em vender a sua imagem ao mundo, mas é também a prova de acefalia das televisões que vêem nesse negócio uma forma de lucrarem à custa da alarve disponibilidade das multidões para perderem minutos, horas, das suas vidas a seguir de perto qualquer banalidade quotidiana da vida de um ídolo.
Já ninguém pensa em remunerar com fama os cientistas, ou os músicos, até num país, como o nosso, que tem entre as suas poucas glórias o facto de eleger um poeta como símbolo do seu dia nacional. A vida não se faz apenas de altos desígnios, da grandeza da ciência ou da genialidade das artes. A vida faz-se também com paixões prosaicas como as que os grandes dribles ou remates de Ronaldo proporcionam. Mas uma coisa é exaltá-lo no seu palco, no relvado onde exprime o seu talento. Outra é pegar nesse talento para o transformar numa espécie de Deus vivo cujos gestos mais ínfimos têm de merecer a nossa atenção.
O que hoje se viu na multiplicação de directos de Ronaldo é o aproveitamento de um génio para chegar a uma criação artificial que rende audiências e, por causalidade, dinheiro. Muito dinheiro. Nada disto seria censurável se o peso do exagero não convertesse o desfile num episódio que suscita asco e lamento.
Ronaldo não tem culpa, nem o Real Madrid, ou, com alguma complacência, as televisões. Quem tem, afinal, culpa é a cultura dominante que cada vez mais relativiza o essencial e se deleita com a imbecilidade. Oitenta mil em Madrid para ver Ronaldo no Santiago Bernabéu e mais uns milhões a seguir pela TV o seu percurso até à sacralização? Pobre Espanha, pobres de nós.
Fica sempre bem chamar imbecil e fanático a quem gosta de futebol, mesmo sendo isto uma operação de marketing e de charme. Aqui o importante é a liberdade individual e se alguém é capaz de estar horas ao sol só para assistir à quem faça o mesmo para assistir a concertos de qualidade duvidosa. Mas fica sempre bem dizer mal de quem está hipnotizado pelos media e pelo futebol e demarcar-se com uma postura elitista (só faltou dizer que depois do artigo ia assistir a um concerto de violinos de Bach, porque isso sim é alta cultura). Enfim, isto é o jornalismo que temos em Portugal, os que transmitem exageradamente imagens do Ronaldo (que ontem penso que se justificou, dado a importância desta operação de marketing.
Convençam-se que não há alta cultura, nem baixa cultura. Existe sim o gosto individual e se alguém gosta de assistir a isto não tem que ser chamado de idiota ou imbecil. A TV tem um botão para desligar (para os que foram obrigados a assistir)